quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Vida

Era um dia de escola como outro qualquer. Alice já tinha o material pronto de véspera. Organizada, não gostava de deixar as coisas ao acaso. Por isso, antes de dormir, guardava cuidadosamente os livros e os cadernos necessários para o dia seguinte. Inseparáveis, os lápis de cor tinham lugar de destaque, num género de bolsa secreta, que só ela conhecia na mochila. Não era por egoísmo que não os emprestava a ninguém. Apenas fazia deles o seu tesouro melhor guardado, prontamente denunciado pelo seu sorriso capaz de encher o Mundo de alegria. Acompanhada pelo orvalho da manhã, Alice desceu a rua e subiu encantada a escadaria da escola. Chegou a horas. Como sempre. Mas a alegria habitual deu lugar a um enorme ponto de interrogação. A professora pediu para fazerem uma redacção. O tema: o que é a vida. Alice ganhou rosetas e começou a brincar com as tranças ruivas, como quem enrola os caracóis. Só se lembrava das expressões dos adultos: “Ai a minha vida!”; “E agora, o que vai ser da minha vida!”; ”Isto não é vida não é nada!”; “Mas que vida é esta!”; entre outras. Ainda era cedo e a ideia da redacção caíu que nem uma bomba no pensamento da pequena Alice. Com um sorriso matreiro, lá se decidiu começar a escrever. Escreveu e entregou. Acto contínuo. Deixou todos em estado de choque, começando pela professora. “Alice, vem cá ler a tua redacção para todos ouvirem”, pediu a professora. “A vida é a vida”, leu e terminou. “Achas que isso é uma redacção?” – perguntou a professora. “Sim, porque cada um tem a sua”, respondeu, visivelmente orgulhosa por ter feito pensar toda a turma, incluindo a professora.

 Reticências

(Text & Photo - Luís Pinto Carvalho - All Rights Reserved)

Posso ajudar?

O senhor Arménio era uma figura única. Vestia uma camisa impecavelmente branca, tirada a papel químico de um reclame do Omo. A brilhantina mantinha-se fiel ao longo casamento com o milimétrico risco ao lado e o bigode envergonhava Errol Flynn nos tempos do Gavião dos Mares. A calça, essa, até pasmava só de ver os vincos e as dobras solenes, acompanhada das asseadas meias brancas e os sapatos engraxados com rigor de ourives. E a mercearia estava pronta para a abrir. Era assim todos os dias. Há 40 anos. “Em que posso ajudar?” - dizia. Há 40 anos. Até que um dia… “Pai, por que é que a mercearia do senhor Arménio fechou?” – perguntou Alice. “Parece que foi por causa da abertura do shopping…” – respondeu. Alice pousou os cotovelos na mesa e as mãos na face e só pensava naquela coisa do shopping. “Então foi por causa dos celtas”, disse. “Não, filha, que disparate, aquilo são apenas uns símbolos que estão à porta”, explicou. “Celtas ou não, foram eles que obrigaram o senhor Arménio a fechar a mercearia”, acrescentou. “E ainda digo mais: eu não ponho lá os pés!” – terminou, revoltada.

 Celtas

(Text & Photo - Luís Pinto Carvalho - All Rights Reserved)